Hoje eu gostaria de renascer de mim mesma. De brotar como se fosse flor, asfalto, punho aberto com dedos esparramados feito ramas buscando a seiva da vida por entre as moléculas de água que pairam no ar. Hoje eu gostaria de renascer como o olhar de um pássaro avistando o cheiro de um cravo branco que decidiu nascer onde nem mesmo o morrer se restaria. Hoje eu gostaria de renascer como quem teve o fio da sorte no anzol das perdas ou como quem se faz de tonto no meio de uma rigorosa sensação de sensatez. Hoje eu gostaria de renascer como se o amor não fosse bruto e a brutalidade não fosse em si uma sensibilidade, a dos brutos que amam sem saber provar do gosto ralo que o amar também dá. Hoje eu gostaria de renascer como uma nuvem encoberta por um vendaval, uma noite de estrelas apagadas porque ficaram presas no espaço entre uma xícara de café e um pires de porcelana chinesa. Hoje eu gostaria de renascer como quem recebe o prêmio dos tédios e a medalha da abelha repelida pelo enxame por ter nascido, não amarela e preta, mas azul e vermelha. Hoje eu gostaria de renascer como quem sai do banho com uma toalha branca nos cabelos molhados e o corpo nu e as janelas abertas e o som de uma música medíocre vindo, feito um dragão d’água, do Tejo para dentro da minha sala de estar. Hoje eu gostaria de renascer para marcar a tatuagem feita pelo nascimento no meio da minha barriga me dizendo que já fui uma vida dentro da vida, fruto de outras duas. Hoje eu gostaria de renascer para saber como é renascer depois da morte e poder entender o pronome fixo na sintaxe dos gatos negros que miam debaixo da lua cheia encoberta pelo silêncio desta madrugada. Hoje eu gostaria de renascer só para saber renascer e saber como se renasce e como seria saber nascer. Hoje eu gostaria de renascer.