Acordou com uma fome. Abriu a geladeira. Comeu o que tinha: três bananas, um tomate e quatro ovos. Nada da fome passar. Andou pela casa. Deu quatro voltas na mesa de centro. Tinha fome. Tinha fome. Revirando, descobriu uns chocolates guardados. Eram velhos e murchos. Comeu-os. Na dispensa, uma lata de milho e outra de sardinha. Comeu-os, os milhos, as sardinhas, as latas. A fome aumentava. Olhou aquelas flores. Mas eram artificiais. Será? Na primeira mordida, um novo sabor. Dava pro gasto. Dava pro gosto. Era faminto. Comeu-as. Aliás, devorou-as. E agora? A fome, a fome. Agora, a fome. Atormentava-o. Era faminto, era faminto. Querendo aquietar-se, sentou-se no sofá. Menos de dois minutos de descanso e sua língua já provava a almofada. Comeu uma, duas, todas. Chegando à madeira da poltrona, comeu-a também. Olhou o vidro da janela. Que vontade! Que vontade! Era um objeto cortante. Ele também era cortante. Cortou o vidro quebrando-o e comeu-o. Comeu-o. E também os eletrodomésticos, a começar pela tv. Hum, a tv. Com todas aquelas imagens recheadas, com todos aqueles sons. Comeu aquelas ilusões e nada de se completar. Nada terminava seu ato faminto. Era uma fome de fios soltos. Uma fome de chips de computadores. Comeu os gigabytes do laptop. Comeu seus melhores arquivos. Comeu os livros da estante e por que não a estante? No final da decoração, sobrava a casa. Aquelas paredes… tão lisas e brancas. Chantilly de concreto. Tinha dentes de ferro. Comeu a casa, o prédio, o condomínio e seus jardins. Comeu os paralelepípedos e as ruas asfaltadas. Comeu o bairro e suas calçadas. Comeu todos os bairros. Deu conta de comer a cidade. E cansado de coisas cheias de areia, olhou uma gente. Era uma gente. Comeria? Será que com as cores variariam os sabores? Comeu uma gente branca. Era carne vermelha. Comeu uma gente negra. Era carne vermelha. Comeu uma gente amarela. Era carne vermelha. Comeu uma gente branca adulta, uma negra criança, uma amarela idosa. Todas carnes vermelhas. Insaciável, comeu todas as gentes e todas as gerações das gentes. Mas todas as gentes renasciam, procriavam. As gentes tinham tanta fome de nascimento quanto ele tinha fome de fome. Muita fome. Tanta que seria capaz de comer todas as gentes, como comeria, mas não de uma só vez. Apesar de insaciável, a fome do Tempo tem hora e lugar pra passar.
Amei esse texto! Tenho fome de seus lindos poemas, Domingas!!!
Obrigada, Marcelo!
Você sempre uma gentileza!
Abção,
Domingas.