Nos acordares, agendamos planos. É a marcha pra frente. Enchemos nossos tanques de combustível e nos preparamos para a largada de um ano que só começa depois do carnaval. Tomamos, bem cedo, nossa vitamina de leite com água sanitária e, nos pulsos, badalamos as horas da responsabilidade.
Praticamos um auto-estupro diário, realizando coisas das quais temos ojeriza. Burocratizamos relações e peneiramos pensamentos. Colocamos tudo nos seus devidos lugares, menos os pingos nos “is”. Não suportamos a dor, mas a toleramos na hora do prazer. Financiamos filmes com finais felizes e achamos que a vida real é aquilo ali. Será que dá pra devolver o ingresso?
Armamos conspirações de uma pessoa só e, intimamente, travamos brigas imaginárias que é para tentarmos deixar o ringue de cinturão. Vamos o mais longe possível, até a lua, para não vivermos só de pão. Temos mães que sentem mais ciúmes de seus tupperwares do que de seus próprios maridos e irmãos que não falam o nosso idioma.
Acompanhamos casamentos que duram um outono e despencam, com a chegada do inverno, suas folhas secas sujando o chão da esperança dos que acreditaram no “felizes para sempre”. Cultivamos a amargura a cada frustração mínima e com apenas uma discussão fazemos um strike nos sentimentos alheios. Nos dias de chuva, fugimos da mesma água que compõe setenta por cento do nosso corpo. Fomos projetados para durar, mas não trazemos garantias contra a ferrugem do tempo. Não sabemos quanto custa uma vida, quem dirá uma morte…
Usamos emails para matarmos as saudades e não aprendemos a rezar por aqueles que nos deixaram mágoas. Guardamos nossos acessos em subsolos rochosos e depois padecemos para desenterrar nossas raízes profundas. Plantamos tantas metas em topos de arranha-céus sem elevadores que sempre chegamos arfantes à satisfação. É, somos seres complexos, tanto quanto simples humanos.