Ao lado da farmácia, em frente ao Sacolão, uma senhora sentada na calçada. Ao seu lado, duas cestas de legumes e frutas. Um papelão, dizia: “Frutas e legumes frescos”. Nas mãos daquela senhora, podia-se comprar hortaliças sem agrotóxicos e se pagar um preço livre de impostos. A senhora não tinha CNPJ. Alguns passantes, quase tropeçaram na idosa mal-vestida. A pele curtida e o cinza impregnado em suas roupas a confundiam com o concreto do chão. A senhora não tinha as cores reluzentes do Sacolão. Nem aquela estrutura toda de venda. A senhora não tinha um caminhão para descarregar sua pequena mercadoria em seu local de trabalho. A senhora só tinha dois braços flácidos e duas pernas cansadas. Mas eram duas pernas que a levavam todos os dias até ali. Eram dois braços que sustentavam suas pesadas cestas de comida. A senhora não tinha plano de saúde, mas graças a Deus tinha saúde de sobra para carregar suas cestas e regar suas hortaliças. E a senhora ficou ali. Com seus cabelos brancos e seus frutos maduros. Até o fim do dia, da vida. Vendeu só a metade de uma cesta: a senhora não aceitava cartão. E voltou pra casa, com o peso das cestas na mão.
Ao olhar aquela senhora idosa carregando todo aquele peso, vi o peso da sobrevivência, vi o descaso da política da corrupção, vi o contraste da visão. A triste imagem daquela senhora, quase tropeçada pelos passantes da vida de ponteiros sempre atrasados, era o hábito. Aquela incomum situação era o comum, era a capacidade humana de adaptação, era o costume acostumado com o surreal, era a facilidade compassiva que temos de nos distanciarmos da aflição. O outro é sempre o sem importância. E eu estava ali, testemunhando a dureza do chão daquela senhora e sendo o outro que a olhava sem dar importância. É que eu só tinha cartão e, por isso, fui comprar no Sacolão. Eu fui comprar porque não quis pensar. Não quis pensar que eu poderia ser o outro a ter de carregar duas cestas para casa. Mas, mesmo sem pensar, eu fui. Eu fui o outro que deixou a senhora voltar pra casa sem ajudá-la a carregar suas cestas. O outro que deixou a senhora voltar para casa com todo o peso do descaso. Eu fui o outro – como tantos outros – habituado à habitual indiferença. Eu fui o outro indolente que confirmou a verdade de um sistema alicerçado sobre desigualdades. Eu fui a manifesta evidência da diferença social, da diferença do peso que carrega quem carrega as cestas da vida. Eu fui o outro que tinha um cartão à mão. Eu fui o outro que aceitou aquele fortuito destino, só porque o infortúnio não era meu. Eu fui como todo outro que, no dia a dia da vida, fecha os olhos à luta – que também deveria ser minha – daquela pequena senhora com suas pesadas cestas.
Aquela senhora – como sempre antes – nunca mais apareceu ali.