Uma pomba na frente de um caminhão. Ela parada. O motorista, sem paciência, buzina. A pombinha olha praquele monstro diante dela e, com uma indiferença pombalina, sai de seu caminho com os passos em câmera lenta. Uma pomba não entende das pressas humanas, das pontualidades dos relógios, de nossas artificialidades… Uma pomba tem coisas mais preocupantes, como a própria vida por exemplo, para viver. Aí, me olhei como se eu fosse o passarinho no asfalto olhando pra mim. E fiquei um pouco triste. Eu estava saindo da minha sessão de análise. Parada na eternidade daquele sinal de pedestres, eu estava no processo interno do entender o quanto uma pessoa pode ser a sua pior pessoa. Porque só mesmo nós sabemos ser conosco tão cruéis. Somente nós sabemos como nos jogar tão baixo. É que por conhecermos exatamente nossos pontos mais fracos, nossos calcanhares de Aquiles, nossas vulnerabilidades, nós temos um trunfo nas mãos. Percebi o quanto eu era o meu próprio e maior boicote. Descaradamente eu me boicotava, mas cegamente eu me negava a ver. Porque o que nós nos fazemos de mal, é aquilo que nossos olhos menos olham. É aquilo que eles melhor fingem não ver. E foi preciso que eu olhasse uma pombinha existir para eu poder me projetar nos olhos dela. E, assim, neste me olhar por outros olhos, eu me vi. De longe. E vi que só nos olhando de longe é que podemos nos ver claramente. Limpos de nossa própria miopia. Límpidos de nossa triste mania de achar que temos a função de estar sempre na função de nos entristecer. Mas agora chega. Eu sou a pombinha. A pombinha que não liga pro tamanho desse caminhão na frente dela chamado vida. A pombinha que dita o ritmo de seus passos e que, na sua petulância indolente, decide caminhar como se o tempo não fosse nada mais do que uma invenção destinada a escravizar aqueles que nele acreditam. Eu sou eu e o meu tempo é meu. Eu sou a pombinha.