Eu estava na sala. A barata saía por debaixo da porta do quarto. Ela viu que eu a vi. Eu vi que ela me viu. Levantei sorrateiro. Fui à área de serviço pegar a vassoura. Com a vassoura no ar, parei. Espere, eu posso ser tão aterrador para a barata quanto ela é para mim. Aliás, se pensar bem, eu sou muito mais. Eu sou um monstro gigante para a coitada da barata, tão pequena. Decidi estabelecer limites. A sala era minha. O quarto, dela. Eu não sabia o que se passava por trás da porta fechada. Na primeira semana, fingi que não via as suas subversões de limites. Na segunda, decidi, na calada da noite, jogar uns farelos de pão por debaixo da porta. Quem sabe isso a ajudaria a se manter dentro das regras. Ajudou. Ela ficou lá. Eu cá. Arrumei-me esse compromisso. Jogar farelos para a barata por debaixo da porta. Com os farelos, ela cresceu. Eu não vi, por estar do outro lado, na sala. Um dia, a maçaneta virou, a barata saiu. Hoje, já velhos que somos, completamos cinquenta anos de casados. Estamos na varanda, conversando sobre nosso inusitado primeiro encontro. Claro que ninguém poderia supor que, contrariando os costumes, eu adotaria o sobrenome da família dela, Samsa. Mas eu quis. Quis mostrá-la que eu a queria em tudo. Até no nome. E pensar que por um julgamento precipitado eu quase matei a barata da minha vida…