Eu tenho a fome. A fome da cultura, da leitura, das gentes, da história, da aprendizagem. Eu tenho a fome de entender os que têm fome, sede, miséria, dor. Eu tenho a fome de aprender com os que têm luz, gratidão, harmonia, amor. Eu tenho a fome de todos os afetos e paz interior. Fome de engolir o sol, o eclipse, a lua, os anéis de Saturno. Fome da comunhão, do pão, da diversão e da arte. A fome da fome de todas as alegrias, dalgum sal de tristeza, a fome imensa da beleza, mesmo a que não aparenta ser bela. A fome da poesia do caos e da criação. Fome da vida que se faz real nos dias da ficção. Fome das memórias, dos antepassados, dos futuros sonhados. Eu tenho a fome dos filhos não vindos, dos bem-vindos, dos abortados. A fome dos amigos, dos colegas, das companhias sem sentido em filas de espera. A fome dos passos cruzados, dos espinhos cortados, dos pulsos vibrados. Eu tenho a fome das contingências e das expansões, a fome dos escalenos e das incongruências. A fome dos trilhos das incertezas e a dos destinos marcados. A fome da fé, da esperança e dos desacreditados. Eu tenho a fome da bondade, da justiça, do respeito aos animais. A fome da liberdade, da solidão das ilhas, dos livros gratuitos, a fome pelo fim dos cárceres. Eu tenho a fome do canto dos pássaros, do espanto dos ventos nas folhas das árvores, a fome da terra, do mar, do ar. Eu tenho a fome voraz do viver que escolhe, que deixa, que tosse, que ri, que acorda e sonha e acorda e acorda e. A fome dos que estão vivos e vivem pelas descobertas ávidas, pelas paisagens, pelas frutas secas, pelos horizontes dos mundos dentro do mundo. Eu tenho a fome. A fome que come, que te come, que me come, que nos come. A fome faminta dos sentimentos vivos, virgens, das fontes, a fome. A fome dos vivos que vivem pela fome desesperada pela fome da vida.
Crédito da Foto: Tessa Rampersad.