Há um conto de Clarice Lispector, um dos mais sublimes na minha opinião, chamado “Perdoando Deus”. Nele, a narradora fala do dia em que, ao andar pela rua e ver as coisas lindas da vida, passa a se sentir a “mãe do mundo”. O carinho toma conta de sua pessoa e tudo passa a ser perfeito. Até que, subitamente, ela se depara com um rato morto. A partir daí, brotam as reflexões. O rato esmagado, caótico, nojento, cheio de tripas e sangue é o outro lado da vida, a outra face de Deus. O rato também é Deus. O rato morto também é a Vida. E assim ficamos pensando… Será que para as coisas serem perfeitas elas têm sempre que ser o que queremos que sejam? Ou será que a perfeição está em aceitar que o Perfeito pode, justamente, ser o fora do lugar, ser o rato morto?
Raramente queremos ver a vida como ela realmente é. Raramente queremos aceitar que as coisas são só o que são. Quando nossos olhos olham, eles simplesmente veem. Simplesmente veem. Os olhos não nos dão o sentido das coisas. O sentido do mundo somos nós quem damos. Olhamos o que olhamos e interpretamos tudo como somos. E somos humanos, ávidos por significar. Queremos “amar o que amaríamos”, como diz a narradora, mas não queremos amar o que é. Amar o que é nos parece simples, objetivo demais. Mas não é. Olhar o mundo como Deus é enxergar não somente a doçura da flor, mas também a ranhura do espinho. Amar a vida como Vida é viver a beleza da pétala e a do sangue enferrujado de um rato morto, afinal, nas palavras de Clarice “o rato existe tanto quanto eu”.
Temos por hábito querermos que a vida seja perfeita. Queremos a Perfeição do jeito que queremos crer que a Perfeição é. Porém nós, humanos que somos, não somos capazes de definir, com perfeição, a Perfeição. A Perfeição não é igual para todos. Perfeição é conceito indefinível, imperfeito de tão subjetivo. Cada um sabe, somente para si, o que significa. Mas não adianta… Imperfeitos masoquistas que somos, vivemos tentando inventar a vida perfeita. E tentar inventar a vida é a melhor maneira de desinventá-la. Pois a vida é o que é. Apenas. Com todas as suas perfeitas lógicas imperfeitas.
Aceitar a vida em todas as suas facetas é ter o dom de sentir o sublime. É saber que dentro do divino cabem as alegrias, mas também as tristezas. Todas as coisas da vida são sublimes. E, sublimes que são, nascem como nascem, nascem onde nascem, nascem porque nascem e do mesmo jeito morrem. As coisas sublimes não têm cura, explicação, vacina, sentido. São coisas que só as palavras da alma podem dizer, e entender…
A vida não nasce para ser inventada, mas para ser ventada, como uma brisa fora de hora que passa. Tentar inventar a vida sem aprender a deixá-la viver leve como ela é, é querer domar o selvagem do instinto, é querer prender o invisível do vento nas mãos, é querer brincar do que não se brinca: de Deus. Reformulando as palavras finais do conto de Clarice: “Enquanto eu inventar a Vida, ela não existe.”