Os cantos da casa agora detêm o teu sorriso. E as molduras dos porta-retratos têm todas o cheiro dos teus cabelos. Passeio meus dedos pelas paredes e é como se o mundo todo se abrisse jardim desfolhado, flor de inverno, samambaia seca pendurada. E como se os passos da vida fossem os tacos deste chão, os riscos imprevistos neste teto, tu me vens feito uma confidência à memória. Um gesto, outro gesto, uma série de palavras mudas que o silêncio da nossa distância abriga. Tu és o sentimento da saudade abraçando o peito descoberto. O lençol da cama roçando a pele sobre a pele, os pingos das águas deslizando do chuveiro até o corpo, do corpo até o chão, do chão até o mar. Um rio de incertezas me invade. Tudo o que não foi dito. O que eu poderia ter feito de diferente? Ter dito que te amava seria o bastante? Sei que muito do que não foi, não foi pela minha falta de entrega. Minha doação não foi inteira, admito. Mas por isso tu não precisavas ser porta. Ou precisavas… Fugiste de mim como fazem as presas dos caçadores, como se eu fosse a doença para a qual tu não pretendeste a cura. E hoje eu te lembro como o gosto daquele dia no parque, nós sobre a grama, um beijo, uns sonhos, uma troca de mãos e as carícias do amor passando seus dedos por meus lábios. Contigo, eu experimentava por dentro a paz das aventuras, as largas avenidas dos momentos densos, os resquícios passionais da linguagem. Um dia, quem sabe, eu saberei ser de outro jeito. Um dia, quem sabe, eu saberei estar aberta ao amor e suas saídas. Aberta a ser a cor mais escura dos trevos da sorte onde habita o fruto da esperança. Mas hoje, eu sigo apenas eu, a mesma das chaves e das palavras trancafiadas. E não há embriaguez que me salve da verdade. De que fui eu a lógica. Da tua partida.
Crédito da foto: Hedi Alija