Acho bem infundado quando as pessoas entram em discussões infundadas. Certas coisas são da ordem da experiência individual, subjetivas e, portanto, pertencem a cada um. Por exemplo, vamos supor que eu tenha chegado a uma civilização em Plutão onde nunca ninguém tenha sentido sequer o cheiro de um morango. E eu, estrangeira, uma novidade, um dia recebesse de presente deles uma frutinha roxa, cheia de pelinhos, meio ovalada, com um cheiro meio azedo e adocicado, com o nome de cadroneconi. Depois de dar uma mordida, sem nunca ter visto nada parecido, eu diria àquele que me presenteou: nossa, apesar da aparência ser muito diferente, o gosto disso me lembra o de um morango. Certamente, o plutariano me olharia com um olhar ressabiado e me perguntaria: mas o que é um morango? Ah, um morango é uma frutinha comestível, pequena, com um formato de cone, vermelha, cheia de sementinhas pintadas por seu corpo, com uma tampinha verde, parecendo uma franjinha, em seu topo. Ainda curioso, o plutariano insistiria: um morango tem gosto de quê? Claro que a minha primeira reação seria pensar: ora, um morango tem gosto de morango. Mas essa resposta só valeria se aquele ser compartilhasse comigo a experiência de ter provado, alguma vez na vida, um morango. E mesmo sabendo que não seria o ideal, eu tentaria explicar o sabor da fruta terráquea a partir do gosto do cadroneconi, a frutinha deles. Diria que era mais azeda ou mais doce, que tinha uma textura diferente, pois não era áspero na língua, que era bem molhado na boca e que tinha um cheiro adocicado que ficava em volta dos lábios depois de mordido. E o outro lá me acenaria com a cabeça, entendendo que nunca entenderia o verdadeiro gosto daquela fruta da Terra. Até que, numa outra futura visita minha, eu lhe levasse de presente um pequeno morango. O extraterrestre provaria a fruta desconhecida e, aí, sim, diria: ah, então esse é o gosto de um morango! Pronto, todas aquelas palavras que eu havia usado para tentar explicar o sabor de um morango estariam resolvidas. Poderiam se calar perante a sua falta de capacidade para traduzirem o que é sentir a experiência de se provar uma fruta ao tê-la na boca. Porque por mais apuradas que sejam as descrições de certas coisas, diante da experiência, as palavras perdem o seu sentido, ficam falhas, poucas, parcas, insatisfatórias. E acredito que assim também seja a experiência com o divino. Percebam, não estou falando de religião. Estou falando de uma espiritualidade direta, sentida através de uma experiência individual, de uma sensação que não se explica por meio de palavras. Outro dia, eu assisti a um filme chamado ‘O Universo no olhar’. Um cientista explicava à sua namorada que uma minhoca não têm olhos e, portanto, não poderia entender o conceito de luz, mesmo que tivesse cem lâmpadas acesas sobre sua cabeça. Talvez o bicho fosse capaz de compreender a diferença entre sombra e luz por conta da diferença de calor, porém nunca pela questão da claridade. Ou seja, querer convencer uma minhoca de que existe um sol brilhando sobre a sua cabeça é o mesmo que querer convencer uma pessoa, há 2 mil anos atrás, de que a Terra é redonda. Uma minhoca sem olhos acharia insano se, um dia, uma outra minhoca chegasse para ela e dissesse: aqui, você sabia que neste momento há uma luz imensa sobre nós?! Ela viraria pra outra e diria: cara, que tipo de terras malucas você andou comendo por aí, hein?! Mas parando um pouco com a brincadeira, e voltando à questão do título desse texto – ‘Sobre se Deus existe ou não’ – para mim tanto faz. Tanto faz saber se Deus existe ou não. Não é isso que importa e me importa menos ainda tentar provar isso. Tanto faz se Deus foi ou não uma invenção da humanidade, que o criou para explicar a vida, dar um sentido ao mundo, livrá-la do medo, fazê-la sentir-se menos só… O que me importa neste “crer ou não crer, eis a questão?” é como eu – no sentido de cada um – lido com essa minha crença ou descrença. Para explicar isso vou voltar à minha infância, no tempo em que eu acreditava em Papai Noel. Durante todo o ano, eu sonhava com ele, com sua chegada, com seu abraço generoso, com seus presentes, com aquele momento em que eu me sentiria visitada, recebedora de afeto, que abriria a porta da minha casa para dar as boas-vindas àquele desconhecido querido. O Papai Noel era um cara que, apesar de só aparecer uma vez por ano – ou nunca aparecer -, estava sempre comigo. Ele era um colo, uma esperança, um sonho, uma satisfação. Ele era alguém que me fazia atravessar o ano com um pouco mais de alegria e um pouco menos de sofrimento por dentro. E, claro, muitas vezes ele me frustrava, quando não aparecia e me deixava na mão, quem nunca se sentiu assim? Mas o fato é que, na minha inocência infantil, na minha ingenuidade pueril, na minha ilusão, existindo ou não, o Papai Noel era uma coisa boa dentro de mim, um sentimento caloroso, um punhado a mais de força, algo que acalentava o meu coração. E eu penso Deus da mesma forma – e, por favor, quando eu digo Deus não estou querendo dizer um cara barbudo, de olhos azuis e cabelos compridos e brancos que fala do alto de uma nuvem radiante -, não… O que eu quero dizer é uma espécie de energia incógnita, uma origem, um pulso, algo que está em tudo e em todos, no nascimento e na morte, em todos os ciclos da vida, sejam eles cheios e alegres ou vazios e tristes. Assim, para mim, o fato de eu crer em Deus, mesmo que para muitos seja me comportar como uma criança, acreditando numa fantasia, e mesmo que eu entenda que, sim, há uma possibilidade imensa de Ele ser uma ilusão, uma quimera, uma ficção, e daí? E daí?! Que mal isso me faz? Que mal me faz ter algo que me ajude a sentir a vida como uma coisa integrada, harmônia, mesmo na desarmonia, experiência e pulso contínuo, mesmo no sem pulso? Que mal me faz crer em algo que faz com que eu me sinta parte de um Todo, parte de uma conexão, um coração em gratidão? Do mesmo jeito que não me fez mal crer no Papai Noel, não me faz mal algum crer em Deus. E se de fato, lá na frente, cientistas alemães comprovarem que Deus nunca existiu, e daí? E daí que ele nunca tenha existido? Papai Noel nunca existiu e nem por isso, sequer um dia, mesmo depois de eu ter descoberto a sua fantasia, ele deixou de me ser uma boa lembrança, um presente, uma sensação calorosa, um amigo.
Crédito da Foto: Marc Olivier Jodoi.